Passo a manhã a explicar à siciliana de serviço recentemente obcecada por Pablo Neruda, por ser talvez o único poeta de expressão castelhana que conhece(!!!!), que os poemas que escolhe são uma grande tontice e ninguém se toca quando lê sobre a a alma morta e o sofrimento atroz do espírito.
Passo-lhe um excerto do “livro das perguntas” de Neruda e leio-lhe “Ou não seria a vida um peixe, preparado para ser pássaro?”. E explico-lhe o sentido. Ou o sentido que lhe dou. E ela abre muito os olhos como quando se é criança e se descobre uma coisa ou como quando se é adulto e alguém põe em palavras aquilo que desesperadamente não conseguimos verbalizar.
E a manhã continuou com peixes e pássaros soltos no nosso gabinete e o momento foi bonito.
Assim mesmo, bonito. Como só podem ser bonitas as coisas tocadas por espíritos Chilenos (saudades de Chiloé, saudades de Chiloé…)
Depois de almoço ao regressar ao escritório, pela estrada do farol, há uma pequena onda que se ergue salpicando o alcatrão, trazendo na crista qualquer coisa que cai na estrada.
Era um peixe.
E eu paro e saio e aproximo-me dele com a urgência dos que julgam que têm uma missão.
Apanho-o e ele debate-se e sinto-lhe a pele fria nas mãos e agarro-a com a outra e devolvo-o ao mar.
E perco-o de vista.
Sorrio achando tudo aquilo hilariante tudo aquilo extraordinário tudo aquilo surpreendentemente fantástico depois de uma manhã de pássaros e peixes à solta no gabinete.
Mas à medida que o tempo corre, à medida que a tarde passa e os peixes e pássaros se vão retirando, de cada vez que cheiro as mãos e não lhes sinto o odor que deveria lá estar, sinto o erro.
E penso na vida peixe preparada para ser pássaro, que sobe até à crista da onda e voa caindo na estrada e nas mãos que a agarram e devolvem ao sítio de onde quis sair, negando-lhe o sonho.
e as mãos foram as minhas.