de ondas…

n/aA chuva em Dili traz atrás de si todo o lixo da montanha, tingindo o mar de castanho, decorando-o com todo o tipo de embalagens.

A chuva  traz o quotidiano para o mar; as embalagens de noodles, os copinhos plásticos de água. E se nos sentarmos quietos ali para os lados do Ocean View, quando a ribeira se decide a ir por outros caminhos,  que não os do costume, vemos a água em velocidade a romper pela terra, chegando-se à estrada e dirigindo-se ao mar e entrando nele em conflito, provocando ondas de puro chocolate com uma violência moderada.

A violência moderada é uma coisa muito irritante.

de massagem 2 …

a menina desta vez não levanta as mãos não junta as palmas e não reza.

não chama o Deus para as mãos.

e massaja.

no dia seguinte acorda-se repousada pela primeira vez desde há muito tempo.

e fica-se a pensar que talvez a dor não exista quando Deus não é envolvido no assunto.

de amor e de sombras…

Irritam-me os blogs intimistas, de grande auto-análise e partilha, egocêntricos, praticamente anais.

Falemos então de mim.

Estou doente.

E repito: estou doente.

E digo-o outra vez: estou doente.

Estar doente não é estar fraco, nem fragilizado, nem dependente. Avaria-se-nos uma coisa. Concertamo-la. Ou não. No meu caso concertamo-la e pronto.

E fica-se triste, claro!

E chora-se e tal. Mas depois desperta-se e organizam-se as coisas e é bom quando olhamos à volta e vemos gente. Ou mesmo sem olharmos sentimos a gente lá.

E a gente não nos agarra com abraços nem nos dá beijinhos no dói-dói. Mas procuram links na net, preços, disponibilizam férias insistem em viagens afuguentam ruidosamente a solidão e a angústia que inevitavelmente se sente quando olhamos o espelho e dizemos a nós próprios: “Estou doente”.

E sabemos que tudo vai ficar bem.

Sei que tudo vai fcar bem.

E não vou dedicar muito tempo a pensar nisso.

Começou a chover em Dili. E quando a chuva bate com força no telhado de zinco e me deito no meu quarto agora branco, agora praticamente organizado e sinto a gente através do som das gotas grossas, sei que este é o meu sítio e definitivamente esta é a minha gente.

E tudo está bem.

de peixes e pássaros…

fishPasso a manhã a explicar à siciliana de serviço recentemente obcecada por Pablo Neruda, por ser talvez o único poeta de expressão castelhana que conhece(!!!!), que os poemas que escolhe são uma grande tontice e ninguém se toca quando lê sobre a a alma morta e o sofrimento atroz do espírito.

Passo-lhe um excerto do “livro das perguntas” de Neruda e leio-lhe “Ou não seria a vida um peixe, preparado para ser pássaro?”. E explico-lhe o sentido. Ou o sentido que lhe dou. E ela abre muito os olhos como quando se é criança e se descobre uma coisa ou como quando se é adulto e alguém põe em palavras aquilo que desesperadamente não conseguimos verbalizar.

E a manhã continuou com peixes e pássaros soltos no nosso gabinete e o momento foi bonito.
Assim mesmo, bonito. Como só podem ser bonitas as coisas tocadas por espíritos Chilenos (saudades de Chiloé, saudades de Chiloé…)

Depois de almoço ao regressar ao escritório, pela estrada do farol, há uma pequena onda que se ergue salpicando o alcatrão, trazendo na crista qualquer coisa que cai na estrada.

Era um peixe.

E eu paro e saio e aproximo-me dele com a urgência dos que julgam que têm uma missão.

Apanho-o e ele debate-se e sinto-lhe a pele fria nas mãos e agarro-a com a outra e devolvo-o ao mar.

E perco-o de vista.

Sorrio achando tudo aquilo hilariante tudo aquilo extraordinário tudo aquilo surpreendentemente fantástico depois de uma manhã de pássaros e peixes à solta no gabinete.

Mas à medida que o tempo corre, à medida que a tarde passa e os peixes e pássaros se vão retirando, de cada vez que cheiro as mãos e não lhes sinto o odor que deveria lá estar, sinto o erro.

E penso na vida peixe preparada para ser pássaro, que sobe até à crista da onda e voa caindo na estrada e nas mãos que a agarram e devolvem ao sítio de onde quis sair, negando-lhe o sonho.

e as mãos foram as minhas.

de acontece…

há dias em que nada faz muito sentido. organiza-se um raciocínio e transformamo-lo em palavras mas as palavras não soam como as pensámos e a coisa que se diz é a coisa que se pensou mas soava muito melhor na nossa cabeça.

as palavras são coisa muito perigosa e com grande tendência para a traição. soltamo-las e quando damos conta elas causam um número infinito de encolheres de ombro, suspiros profundos e sensações de tédio infinito. e quando olhamos para elas mal as reconhecemos porque as tontas vestiram-se de outra forma.

a tecnologia de comunicação é também muito matreira. a pessoa na sua inocência vê-a como uma ferramenta de eliminação da distância. mas não é bem assim. os teclados são obra do demo. a pessoa digita e espera em frente ao monitor – qualquer que seja o seu tamanho – e concede uma janela temporal de não menos que 3 minutos à resposta. o blackberry anda por aí a arruinar coisas que no tempo dos serviços de snail mail teriam 80% de possibilidade de sobrevivência saudável.

as relações passaram a depender da qualidade de acesso e bom funcionamento dos meios tecnológicos. a medida da emoção é feita através da rapidez da resposta. isso do amor é uma questão de timing.