
Acordei ás 6.30 da manhã de supetão.
A parte superior do corpo ergueu-se sem eu ter noção de ter usado ou não as mãos como apoio.
Virei a cabeça para o lado esquerdo e vi a luz do dia e senti o ar fresco da madrugada em forma de brisa a agitar suavemente as folhas da cerejeira.
Inspirei.
Vi a teia de aranha que se formou durante a noite.
Expirei.
Virei novamente a cabeça e olhei para a parede branca em frente e subitamente, assim como se fosse um clique, assim como se estivesse na água prestes a afogar-me e a vida me passasse pela frente em meras fracções de segundo como nos filmes não-europeus, assim subitamente, consegui identificar todas as más decisões que tomei na vida, o porque foram más, o quando começaram a ser más, o porque se tornaram más. E dava a sensação que as seguia com o dedo como se fizesse a decomposição de uma frase em árvore, a esquematização de um projecto, como se seguisse um mapa de estrada com todas as pequenas aldeias e lugarejos identificados.
E sucederam-se os rostos, as paisagens, as reuniões, as paixões. E em cada uma das situações que visionava eu podia com o indicador precisar com exactidão em que momento se deu a mudança. Como se fosse uma complexa rede rodoviária e o dedo apontasse todas as intersecções.
E aquele momento de clareza trouxe-me uma paz e uma angústia e um sossego agitado. E a sensação de finalmente ter percebido o meu trajecto, o porquê do meu trajecto, o sentido de cada angústia, o papel de cada pessoa que se cruzou comigo, ou a ausência dele. E vi os rostos daqueles em quem não vou investir mais, e vi os rostos daqueles por quem perdi o respeito, e vi os rostos daqueles a quem me cansei de perdoar e tentar entender e senti-me especialmente forte. Pela primeira vez senti-me imbatível.
Não imbatível de uma forma arrogante, mas imbatível porque consciente do que sou, do caminho que fui traçando entre o desejo, o plano e o acaso, dos meus grandes fracassos, dos meus pequenos sucessos, fui sempre eu toda e inteira, sofrendo com a mesma intensidade com que vivi a alegria, com a mesma sofreguidão com que como um prato de pene e salmão fumado com molho de vodca.
E adormeci novamente.
E o segundo despertar foi igual ao dos outros dias.
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