de…

 

deixem-me dizer-vos, eu muito hip mum ando há quase um ano a cantarolar à menina “Maggie uh uh uh nan nan nan nan nan nan Maggie uh uh uh” assim tipo como quando se é miuda e se inventa o inglês. e ía-me esquecendo dia após dia de descobrir de quem raio era isto e de fazer o download ilegal ou algo no género de forma a aprender mais do que uma frase.

mas como nem nunca tinha visto o clip (sim eu sou dos anos 80), nem ouvido a musica completa, quando pensei em finalmente o fazer fui por tentativas – ora quem poderia ser? os BSS? não… a voz lembrava quem? o olavo bilac… poderá isto ser português? mas tem um toque assim de will.i.am. e lá fui escrevendo maggie e alternando com nomes e nunca lá cheguei.

ora hoje de manhã, de chávena de chá na mão e adoçante e porque sou muito cool, lá ligo a MTV e estavam uns meninos a cantar a Maggie, que afinal não é MAggie mas “beggin”. a coisa não começou muito mal, os meninos iniciam o clip a jogar Halo3, mas a coisa evolui e acaba com a miuda a beber leite de gatas com a língua… enquanto o Tshawe Baqwa grita:
Beggin, beggin you
Put your loving hand out, baby
Beggin, beggin you
Put your loving hand out darlin

um dia, ela vai crescer, e numa tarde de enfado liga a VH1 num program de Smells like 09 e sufoca de espanto ao concluir que a mãe lhe cantava isto em pequenina…

e assim se constroem memórias e destroem reputações…

de o rio da minha aldeia…

a minha piquena é apaixonada por musicais e merecedora das melhores surpresas e como tal resolvi contactar a produção de um desses espectáculos da Broadway mais ou menos na esperança que eles enviassem material de promoção ou algo no género, qualquer coisa que ela colasse na parede ou enfiasse pela cabeça e a deixasse histericamente feliz – o que não é coisa dificil.

Assim lá enviei um email e porque sou caridosa e não gosto de vexar ninguém expliquei-lhes que era da Europa e não mencionei Portugal porque qualquer alma sabe que os Americanos são pessoas muito ocupadas e por vezes não lhes sobra tempo para olhar para o mapa na sua totalidade.

Recebi prontamente resposta e a responsável pelas Relações Públicas lá do sítio simpaticamente informou-me que de facto não têm espectáculos agendados para o meu país – a Europa – que sempre sonharam fazer digressão pelo meu país – a Europa – e se eu vivia na capital e se era quente ou fria – a Europa e se era dificil aprender Europês.

Eu, no mesmo espírito caritativo que me fez não mencionar Portugal respondi-lhe com igual simpatia e expliquei que por cá – na Europa – de momento faz frio, também estamos perto do Natal mas lamentavelmente já não vivo em Lisboa, a capital da Europa e que de facto o Europês a que normalmente chamamos Português, não é uma língua fácil de aprender.

Agora sinto-me um bocadinho culpada…

de completa…

há muitos anos atrás em Londres, conheci o pequeno Henry – um cruzamento feliz entre Inglaterra e a China – com 3 anos de idade. Durante as duas semanas que estivemos juntos vimos repetidamente o “Snowman” em video, à noite antes de dormir. E ele agarrava-me com a mãozinha papuda e explicava-me, num Inglês muito melhor que o meu, que o boneco ía derreter e tentava tapar os olhos com a mão que lhe restava, sem nunca me largar. Apaixonei-me pelo filme e acima de tudo apaixonei-me pelas emoçoes que despertava num ser tão pequenino.

Meses mais tarde recebi no escritório, como prenda, o filme. Lembro-me que fiquei muito quieta com ele na mão, sem saber porquê.

E depois guardei-o. Durante anos. De vez em quando pegava-lhe e fazia fw até a cena do vôo. Fazia-me triste e desligava-a.

No primeiro Inverno da Gui, apresentei-lho. Quando o viu a segunda vez apertou-me a mão e disse-me aflita que o boneco ía derreter e tentou tapar os olhos com a mão que lhe restava.

E fomo-lo vendo repetidamente até o cenário de neve deixar de fazer sentido e a versão improvisada em DVD ter desaparecido.

Hoje reencontrei a parte do vôo no Youtube.

Mostrei-lha. Fê-la sentir-se triste e tive que desligar.

Há dias em que sinto que não me falta nada…

de ausência…

um dia, já depois das pessoas terem fugido da cidade e se concentrado em zonas que supostamente lhes ofereciam segurança, um dia ao regressar de Dili para Baucau com uma cassete nova a tocar no carro, comprada à pressa na rua na esperança de não vir a adormecer ao volante, assim um dia com o M ao lado que acredita no Deus Católico Apostólico Romano e fez disso profissão, um dia ao passarmos em Metinaro num final de tarde, com as pessoas a regressarem da cidade, com as janelas fechadas por segurança – seguindo o protocolo – num andamento lento muito lento, com olhos a seguirem-nos e a voltarem-se depois com uma indiferença ausente, com crianças sem uniforme da escola e tendas e tendas de roupa em 2ª mão, ouve-se uma voz no carro, e violinos e violoncelos. e a voz eleva-se e apaga os sons de lá de fora. e em câmara lenta, muito lenta, ouve-se inesperadamente o “Panis Angelicus”. E a voz diz-nos Panis angelicus, fit panis hominum; dat panis coelius figuris terminum O res mirabilis. E tudo era calmo, e triste e doce. E a voz eleva-se levemente enquanto passamos nas tendas com molhos de mostarda e flores de bananeira e a voz diz “manducat Dominium Pauper, Pauper, Servus et humilis, Pauper, Pauper Servus et humilis”, e ao fundo, lá ao fundo onde a estrada encontra o céu, tudo se torna vermelho e azul e rosa e sente-se Deus ali ao lado quieto, imóvel, limitado à contemplação. E as pessoas continuam a desfilar ao lado do carro, já cinzentas, ainda lentas –  Pauper, Pauper Servus et humilis  – e vão ficando para trás até se apagarem, cobertas pela noite. E Deus retira-se, sem a mesma subtileza com que entrou naquele carro.

de uma mão cheia de nada…

 

ainda muito miuda, recebi da minha mãe um livrinho pequeno laranja com um desenho em preto na capa à moda de negreiros e um título “uma mao cheia de nada e outra de coisa nenhuma”. era de irene lisboa.

dos contos não me lembro de nada. irene lisboa era uma pedagoga que tratava as crianças como seres inteligentes não se compadecendo com inhos e inhas na literatura. certa ou errada na abordagem, a verdade é que não resta memória da escrita, mas o titulo durante anos e anos incomodou-me.

pequenos e repetidos momentos da infância foram passados sentada no chão em frente ao estirador do meu pai, no sitio onde o sol incidia com intensidade a uma certa hora. e repetidamente abria ora uma mão ora outra e tentava apanhar as partículas suspensas que os raios me permitiam ver. abria-as e virava as palmas para mim e não via nada. sabia que não tinham nada mas não as sentia cheias de nada.

e apesar de conseguir entender o conceito do nada, não conseguia – e falta-me o termo e só me vem à memória o inglês – não conseguia “grasp” o conceito de abarcar com a mão a plenitude do mesmo.

e fui crescendo e esquecendo a falta desse entendimento. e dei por mim em ocasiões diversas a virar as mãos para o sol, fechá-las e voltar as palmas abertas para mim, mecânicamente e sem memória da razão do gesto. e dei por mim de braço de fora no carro em andamento, a sentir a mão ondular com a velocidade do vento a tocar um tudo que se transforma em nada ao fechá-la.

e de irene lisboa não ficou a memória dos contos do livro laranja, mas ficou a marca do exercício de tentar entender o que não carece de entendimento e de tentar materializar a grandeza do nada simbolicamente representado numa mão cheia. cheia de coisa nenhuma. como a vida de muita gente.

de bella ciao…


por vezes por instantes sente-se que tudo tem que mudar. que as revoluções têm que voltar a ser feitas. as propriedades rerepartidas. o poder reredistribuido.o nepotismo expôsto. tudo isto sem memória mas com a determinação de quem sabe que 30 anos depois tudo terá novamente que mudar. que as revoluções terão que voltar a ser feitas. as propriedades rererepartidas. o poder rereredistribuido.o nepotismo expôsto, assim como se troca um bateria de telemovel que já viciou o processo de recarga…