…de mudança

Ao passar pelos rascunhos – já do ano passado, e porque neste blog se escreve uma vez por ano, encontrei este titulo e duas ou três frases escritas sobre deixar a Ásia ao fim de tantos anos e voltar, temporariamente escrevia eu, a Portugal. Mais interessante ainda foi constatar que nem sequer tive a coragem de escrever Portugal; chamei-lhe Europa. Não deixa de ser interessante que para mim europa seja um recurso eufemístico para Portugal! O que nós crescemos, senhores!

Escrever neste blog é um exercício interessante porque, e repetindo-me, passou a ser anual, e porque como desastradamente deixei que me roubassem o domínio, nenhuma das pessoas que me seguia antes o conseguiria fazer agora, caso sentisse curiosidade. Portanto este blog poderia facilmente tornar-se agora num diário dado existir uma quase certa garantia de que o que cá seja escrito ficará perdido na blogosfera, num silêncio total, não por estar em forma de palavras, mas porque ninguém as libertará da sua pobre condição de simples caracteres ordenados que só se transformam em texto se forem lidos e mais ou menos sentidos.

O facebook é interessante porque tem aquele algoritmo fantástico que nos permite relembrar coisas que publicámos há anos.

Hoje apareceu esta foto e esta foto é do tempo do tal rascunho:

20-dez-2015As fotos são veículos curiosos porque mostram na realidade muito pouco. Se olharmos assim, como toda a gente olhou quando a minha filha a publicou, são 3 pessoas felizes que tiveram finalmente a possibilidade de ver o novo filme do Star Wars praticamente no dia em que estreou mundialmente, num país onde não ha água potável – isto não é um privilégio é um evento orgasmico.

Quando hoje revi a foto, não me recordava sequer da ida ao cinema, não fora a legenda. O que  vi foi em primeiro plano uma menina que no espaço de 6 dias deixaria a escola que aprendeu a gostar, todas as amigas que se tinham tornado importantes de uma forma muito real para ela e que lhe permitiram um equilíbrio definitivo com a sua dualidade cultural. Onde aprendeu a não se se deixar afectar por miudos Portugueses pingos de gente mal formada reflexo de pais espiritualmente tolhidos, com os quais apesar de partilhar todas as referencias culturais dado ter sido educada por dois pais também eles Portugueses e de ter feito toda a escolaridade até à data numa outra escola internacional, tornando-a fluente em praticamente 4 línguas, era considerada demasiado escura e demasiado confusa para poder ser incluída na privilegiada esfera de brancura Tuga. Não consigo deixar ainda hoje de me perguntar: se vives num país diferente do teu e colocas os teus filhos numa escola com crianças diversificadas em termos de cor e origem sendo a maioria delas do país que te recebeu, não te questionas quando os teus filhos não levam para casa rigorosamente exemplar algum local? Não te autoquestionas? Manias minhas talvez, poderia eu dizer porque normalmente terminam-se assim os raciocínios deste género. Não! Não são manias minhas. É racismo, ok? Os Portugueses são racistas e neste momento de loucura atrevo-me a dizer também que não fomos simpáticos colonizadores e diferentes de todos os outros apesar dos nossos homens terem copulado mais livremente do que os Britânicos. A desculpa do coito já não pega, meus Senhores.

A menina em primeiro plano teve também que reduzir a vida dela a 25kg de bagagem. E isso, qualquer mulher sabe, qualquer que seja o contexto, é violento!

No meio estou eu de bochechas. O sorriso é obviamente forçado porque não gosto de ser fotografada, mas ainda assim consigo ver nele alguma tranquilidade apesar de me estar a despedir de 7 anos de trabalho no mesmo projecto e a oferecer-me de braços abertos ao desemprego, de à nossa volta já pouco restar do que fomos reunindo ao longo dos anos: o piano comprado em segunda mão num bar de um tailandês e que eu gosto de pensar que veio diretamente de um bar de putas em Banguecoque daquelas que jogam pingpong com o pipi, os moveis que fui desencantando em locais improváveis tipo stands de automoveis usados de Singapura e que me enchiam de orgulho (juro, enchiam-me de orgulho!) e acima de tudo todos os quadros compostos pelo Gonçalo que nos enchiam as paredes todas da casa transformando-a nisso mesmo, numa casa. E os nossos cães, de quem não temos coragem de falar.

Ao meu lado está o Gonçalo, assim na pose que assume enquanto marido; braços cruzados à super herói mas encostado a mim para não se desequilibrar! E eu gosto disso. A foto não mostra que dentro do Gonçalo está um segredo que tinha sido descoberto por acaso e que muito provavelmente nos últimos 10 anos e muito silenciosamente, o segredo foi crescendo em bicos de pés para ele nem ninguém dar conta e planeava aniquila-lo! Assim, cobardemente por dentro, escondido, sem que ninguém pudesse ver ou fazer nada.

Descobrimos o segredo quando estávamos os dois em Bali numa Villa linda e romântica, de um Francês  simpático que nunca vi e me tratava por Áléquesandrá, daquelas villas que não aparecem nos cartazes turísticos porque são tão cozy que mesmo em termos de airbnb ficam assim borderline. Tínhamos janelas no jardim que poderíamos abrir para ver o riacho onde se faziam oferendas, tínhamos o duche tipicamente balinês, a banheira ao ar livre a coberto da chuva, a piscina pequena e privada, a rede de pano, a cama de dia, o quarto de princesa, o jardim manicure, a empregada discreta e simpática. Estávamos no meio de uma zona habitada por balineses, suficientemente longe da zona de Seminyak mas não tão longe que fosse desconfortável chegar até lá a pé ou de taxi. Descobrimos uma casa de chá novinha em folha cuja especialidade eram éclairs e tinham de todos e todos e era tudo tão pequenino e perfeito que cada elemento teria sido colocado com pinça. E para chegarmos até lá caminhávamos ao longo de uma estrada ladeada por grossistas de estátuas esculpidas em pedra, moveis expostos aos elementos para se transformarem em antiguidades e estávamos felizes por mais uma vez perceber que Bali tem sempre algo novo para nós e por muito que tentemos não nos conseguimos cansar da ilha.

Depois um dia, quando como seres conscientes resolvemos aproveitar o estar ali para sabermos como andaríamos por dentro, e investimos dinheiro que poderia ter sido gasto em foie gras, em exames medicos num hospital de cinema, descobrimos o segredo.

Bali ficou diferente a partir dali. Passou a ser o sítio onde o nosso mundo, como no mais básico dos clichés, ruiu. Caminhar ao longo daquela estrada perto de casa transformou-se numa dor porque ficava sempre a sensação que aquela poderia ser a ultima vez que tocava aquelas pedras transformadas em Deusas prestes a serem transportadas para o outro lado do mundo e compradas por fortunas por gente que não sabe que Shiva representa a destruição e a morte e não apenas o renascer e que tem uma pila grande grande em muitas das suas representações e que isso não seria bonito de ver no jardim ou na sala em Bel Air.

O segredo estragou-me Bali. E enquanto eu tocava estas pedras feitas de lava solida, pedras que estiveram bem la no fundo, no interior da terra, liquidas, mas que conseguiram mudar de estado e assumir forma, falava com elas como uma tonta, assim sem abrir a boca, enquanto seguia com o olhar o homem que estava a tentar descobrir como se finge que se é forte e indiferente ao medo e que ía assumindo poses tontas a espreitar as zonas intimas das esculturas gigantescas de soldados chineses. Por vezes o sol do fim do dia incidia sobre ele de forma intensa e eu tinha vontade de gritar “Afasta.te da luz, afasta-te luz”, mas recuperava a dignidade rapidamente recordando-me que não eramos uma serie da Fox Life. Invariavelmente caminhávamos na direção um do outro e eu pousava a bochecha redonda no peito dele e empapava-o de lagrimas e sentia-o a partir – os ombros pareciam mais estreitos, os braços mais magros e curtos como se já estivesse a ser reclamado e por muito que me agarrasse ao que restava, ele iria escapar-me como areia entre os dedos até nada restar e eu ficar sozinha e nunca mais poder voltar ali.

Bali faz parte de mim. Tenho memórias lindas da minha filha pequenina e do Hotel meio chunga que a foi vendo crescer e onde os empregados sabiam o nome dela. Tentamos as duas até hoje encontrar um nasi goreng melhor do que o deles mas não temos coragem de voltar a ficar lá porque no fundo somos umas snobs!

Entrámos em 2016 já em Portugal e com um rascunho muito básico de como seria o ano. Seriam só 3 meses. Uma cirurgia, uma recuperação e voltávamos, ok? Mas não foi assim.

À cirurgia seguiu-se a surpresa da quimioterapia, porque o segredo tinha um nome e o nome era Cancro. Ninguém diz cancro. Diz-se um pequeno tumor maligno e coloca-se ênfase no pequeno. Melhor ainda será dizer piqueno tumor maligno. E se se disser cancro, se efetivamente se usar a palavra. a tradição exige que se baixe a voz. É cancro – e a ultima palavra diz-se assim quase como em mímica. Como se estivesses a falar da filha de alguém nos anos 70 e se dissesse pois coitadinha divorciou-se, ou está separada – e baixava-se a voz porque não era coisa decente para se ser ou fazer e muito menos repetir em voz alta.

E eu, eu que sou tão cheia de tudo e afinal muito à Irene Lisboa tão cheia de coisa nenhuma, dei por mim a dizer sim estamos por cá tivemos um pequeno percalço de saúde. Sem especificar quem ou o quê, como se o Gonçalo ter cancro o tornasse menos macho, como se a responsabilidade de ter cancro fosse dele. O malandro, deu-lhe para aquilo! Vejam bem! Apeteceu-lhe! O cancro do Gonçalo não nos aproximou. Muita gente diz ah a doença tornou-nos mais próximos. Acho isso estúpido e eu conquistei o direito de dizer que acho isto estúpido. O cancro do Gonçalo demonstrou que somos perfeitos como casal. Sim, eu disse perfeitos. Somos absolutamente perfeitos como casal. Não creio que em momento algum o Gonçalo tenha pensado que eu o abandonaria por ele estar avariado, que eu o achava menos homem por estar debilitado, que o amava menos por ele ser simplesmente humano. O cancro do Gonçalo era meu também. Era ele que era injetado, era ele que apanhava grandes pedras de morfina enquanto nós aguardávamos que  despertasse para ouvir sobre as alucinações que tinha tido – pássaros a voar na enfermaria e coisas divertidas no género. E tirando essa parte injusta, porque juro que quero experimentar, estávamos os dois saudavelmente doentes e a ser tratados e encarámos tudo isto com a leveza dos débeis mentais e com a profunda crença de que Deus efetivamente existe mas é terrivelmente distraído e que nos cabe a nós à maneira Timorense quando a lua desparece e o céu fica escuro, vir para a rua bater panelas para que Deus ouça o barulho e se recorde que estamos por cá.

Portanto Deus, estamos aqui. Tocámos-te na tua forma comercial Hindu em Kerobokan a caminho dos éclairs de caramelo, louvamos-te de cada vez que olhamos para a Margarida, para o Pedro e para a Leonor e pensamos que não ha nada no mundo melhor do que eles (excepção feita ao tal nasi goreng referido anteriormente), não nos ajoelhamos em igrejas, não cumprimos rituais, mas somos incapazes de magoar o próximo, de desejar mal ao próximo, de prejudicar o próximo. Acreditamos no direito de todos à educação, aos cuidados medicos não básicos, mas aos necessários, aos álbuns do Bowie, à igualdade de género desde que não nos venham com discursos sobre o assunto e apresentem axilas depiladas, aceitamos que sejas tratado por qualquer nome e respeitamos todos eles, vemos-te como Pessoa manifestado nas arvores, nas montanhas, nos rios, nos risos e admirar tudo isso é a nossa forma de oração. E agradecemos-te este ano de merda de 2016, em que sofremos, em que tivemos medo, em que nos sentimos no limite do suportável, em que chorámos mas nunca quisemos desistir e hoje é dia 21 e ainda aqui estamos e coisas boas começam a acontecer e portanto estamos de panelas na mão a lembrar-te que continuamos aqui, não te esqueças, e precisamos de sopas e descanso em 2017.

Amen!

 

 

 

…de gata Tia

A pequena Tia apareceu nas nossas vidas no Sábado de Aleluia depois de um descuido meu em que mencionei ao veterinário local que gostariamos de ter um gatinho muito pequenino para o cão ter oportunidade de se habituar a ele e vice-versa. Nessa tarde recebemos um telefonema de um Hotel local a pedir para irmos escolher um bichinho ao parque de estacionamento. Depois de dois dias de Gui a dar instruçoes à amiga para se rebolar debaixo dos carros estacionados enquanto ela dava as ordens, o bichinho foi apanhado e trazido para casa enrolado num plastico.

Ao ser lavado descobrimos que era branco.

Come e come e come e rebola-se aos nossos pés para ser coçado na barriga. É menina e chama-se Tia. 4 meses passados continuamos a ficar eprdidos a olhar para o bicho e as posiçoes irreais em que dorme. Esta coisinha pequena é profundamente meiga e sem que ninguem desse conta, conquistou um lugar, ocupou um espaço. Por vezes esquecemo-nos que estas coisas acontecem. Alguem entra nas nossas vidas, seja bicho seja gente, e toma-nos conta do coração e não temos uma palavra a dizer durante o processo porque quando damos conta a coisa está feita!

Seja bicho, seja gente.

E por isso a vida vale a pena.

de saudável…

quando se coloca uma criança numa escola australiana, sabe-se que para alem da total falta de maneiras se vão herdar uma serie de tradiçoes alimentares muito pouco saudáveis.

com a língua vem uma linguagem corporal de uma coolness pouco recomendada para quem queira viver alegremente neste lar- as correcções aumentaram cerca de 90% desde que a criança se escolariza no meio down under.

a par disso há uma saudavel interacção com a comunidade que se traduz num conjunto de iniciativas para angariação de fundos para isto e para aquilo, sendo isto e aquilo o projecto de pre-school dos miudos que vivem no bairro da escola, a biblioteca de uma outra escola nao sei bem onde porque não sou uma mae disponivel, e mais duas ou três actividades para salvar qualquer coisa muito importante.

esta angariação de fundos é feita com a venda de coisas e as coisas são regra geral coisas de comer. assim temos ice cups a meio da manhã mas é importante contribuir porque vai ajudar os pobres e temos queques disto e daquilo para comprar porque também vai ajudar imenso os pobres e mais isto e aquilo muito doce que também vai ajudar os pobres. no fundo, a felicidade de uma série de crianças e a economia de outras tantas depende dos níveis de consumo de açucar da minha filha. e eu lá vou aceitando porque nesta familia gosta-se muito de pobres; de tal forma que na realidade se eles nao existessem ninguem neste núcleo familiar teria emprego, o que não deixa de ser uma reprovavel ironia.

mas a verdade é que esta criança pouco habituada a doces, vê-se subitamente exposta a esta nova realidade podendo fundamentar a sua adesão à nova dieta numa acção de puro altruismo. doar directamente o dinheiro privando-a do tremendo sacrificio de comprar doces numa base diária seria boicotar um sistema caloricamente construido numa perspectiva didactica.

assim, temos agora em casa uma miuda que gosta de doces, que não é amiga da fruta e que usa adjectivos que eu desconhecia, em estrangeiro, para qualificar os broculos. porque comer vegetais não é cool! e se levas um packed lunch, nada deverá ter um tom verde caso não queiras ser um social reject.

por aqui estamos definitivamente nas tintas para o processo de aceitação social da criança no grupo com base na dieta alimentar. estamos portanto “in paints”!

apesar da criança na maioria das vezes comer na cantina da escola, a coisa não melhora. e nào melhora porque o rebento estuda num local onde a cantina se resume a duas senhoras representantes de dois restaurantes, que vão todas as manhãs munidas de um menu com fotos, recolher os pedidos para almoço de cada criança. na hora respectiva, os meninos encontram na mesa no jardim uma caixinha com o nome deles e o prato que pediram. as escolhas da minha filha alternam invariavelmente entre os pratos filipinos e os tailandeses com excepção da sexta feira, em que o senhor das pizzas também aparece por lá.

o ser nova numa escola onde não dominava a língua e tudo e todos eram estranhos, fez-nos ser permissivos e aceitar rotinas e hábitos absolutamente fora da norma de casa. Um ano depois e passado o período de adaptação, chegou o momento de recuar e reeducar os habitos e maneirismos da criança. depois do cold turkey das férias grandes (que aqui o ano escolar é mais ou menos ao contrário e começamos com as aulas a 26 de Janeiro), vem o fim de semana de negociação de menus escolares. 3 dias de almoço levado de casa alternados com 2 dias de almoço na escola. um ice cup por semana. muitos verdes e vermelhos na comida e refeições preparadas por ela própria na vespera antes de se ir deitar.

Por agora, e para recuperar o vício da fruta, recortamos com os moldes das bolachas pedaços para o pequeno almoço.

As aparas ficam para a mãe…

de fazer o Natal…

 

por muito que se sonhe com um Natal tropical, longe da chuva e do frio do Dezembro Europeu, a verdade é que vivê-lo entre a praia e o ar condicionado a 16 graus na sala, num esforço tremendo para baixar a temperatura, não é agradável.

As bolachas de gengibre sabem melhor com chá quente. Fazer biscoitos é um desprazer por causa do calor do forno. Decorar bolachas é uma impossibilidade porque tudo derreterá com  calor. Nas janelas da sala estão pateticamente penduradas as meias de Natal. Quentinhas, com bonecos de neve e temas de inverno. Chinesas. Ao lado as botas da tia Jana. Personalizadas. A um canto um pinheiro verde vivo de plastico. Chinês. Decorado com bolas todas elas muito vintage e muito plasticas. Chinesas. E curiosamente gera-se uma certa harmonia e a coisa resulta. E o Natal entra pela sala e agarramo-no a ele. Longe de tudo o que se tornou a nossa tradição. Longe das pessoas que o formam e lhe dão consistência.

E criamos assim uma atmosfera artificial a uma temperatura artificial e esforçamo-nos para que no meio da saudade e do vazio que a ausência de gente querida nos deixa, se crie um espaço que deixe memórias das que vale a pena recordar.

de melhorar de vida…

a minha filha aprendeu 3 acordes na viola e finalmente decorou-os.

ontem compôs uma música e fez uma letra.

a música fala do cão.

não fala da mãe e de quanto a ama.

fala do cão.

e de que o cão morde e foge.

a letra é em estrangeiro. E isso faz-me perdoar o facto de que a sua primeira composição não é sobre a mãe e sobre quanto a ama.

em inglês poderemos cobrir muito mais mercados.

terei que desistir do trabalho e mudar-me para St Barts.

Hollywood não faz nada pela educação de uma criança.

de aniversário…

A minha filha fez anos.

Foram 9.

Fez um convite lindo em Inglês.

Em Inglês.

Depois os meninos vieram e falaram e brincaram todos em Inglês.

Brincaram em Inglês porque a partir de certa idade as brincadeiras têm linguas. E à medida que crescem essa linguagem refina-se excluindo outros tipos de comunicação se não estivermos alerta.

Cá em casa manda-se a miuda à escola Internacional e depois imaginamos as sensações dos milhares de emigrantes Portugueses que mandam os filhos para as escolas dos países de acolhimento e vão buscá-los ao fim do dia a um outro planeta sem que ninguém os apoie na ponte entre esses dois mundos.

Na escola dela há meninas Africanas que tiram a peruca de cabelos lisos ao intervalo para arejarem a cabeça explicando que trocam de modelo todos os meses. Há meninas Japonesas que colocam os dois dedinhos no ar em todas as fotos e têm mães delicadas e doces para toda a gente. Há pais que vão ensinar origami e Francês e isto e aquilo e os miudos sentem-se uma comunidade que se reune periodicamente em Assembleia para mostrarem uns aos outros o que andam a fazer.

Mas mais importante do que isso, a minha filha fez 9 anos e pela primeira vez compreendi que ela é completamente feliz.

Em paz com ela própria, com o mundo que a rodeia e com o universo que criou.

E é nisso que ambos pensamos quando nos agarramos um ao outro na vã tentativa de não morder os pulsos quando ela toca pela enésima vez o “Persian Market” na pianola…

Parabéns, querida!

9

Foram nove…

de crescer…

basicamente é assim. Tens uma miuda pequena em casa que te faz babar a cada gracinha.
Tens que contar a toda a gente e arranjas um blog.

Vais pondo fotos, contando detalhes. Crias uma rede de leitores que partilham os teus dias e o processo de crescimento da miuda. Alguns dos leitores têm miudas da mesma idade ou idades semelhantes sendo fácil assim criar um processo de empatia.

Os anos vão correndo e vais criando a sensação de que há por aí uma serie de miudos que conheces sem nunca lhes teres tocado. Porque viste-os crescer na blogosfera. Porque acompanhaste as fotos de todos os momentos significativos da vida deles no Flickr. E gera-se uma sensação de uma certa intimidade. E perdes a sensação de escrever para estranhos porque lentamente começas a interagir com cada um dos teus leitores.

Mas a verdade é que para cada leitor que manifesta a presença, há uma serie de outros deles que se mantêm em silêncio e que vieram para ao teu blog porque googlaram algo relacionado com sexo e tu em tempos escreveste um post sobre a capa de um livro com uma senhora de perna aberta sem a modesta cueca e eles vêm parar aqui.

Entretanto a miuda cresce. E transforma-se aos 8 quase 9 numa pre adolescente com maminhas. E tem imensas opiniões sobre as coisas. Tem preferências, vive encantos e desencantos que lhe vão moldar a personalidade. Vês o esboço de um adulto e começas a conseguir adivinhar traços de como vai ser quando crescer mais ainda. E subitamente realizas que as gracinhas dela já não são tuas para contar. E que a ela já lhe assiste o direito de definir o que quer ou não quer que seja contado. E que ela criou o seu próprio conceito do que acha ridiculo e do que a pode ridicularizar. E é nessa altura que sentes que o espaço que criaste para a partilhar, terá que ser ocupado com qualquer outra coisa.

Esta filha já não é tua para contar.

E fica-se assim um bocadinho triste…

de acertos…

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Os novos amigos já são queridos mas não substituem a tristeza da distância dos antigos.

E eu gosto que seja assim. Gosto da ideia de ter ajudado a moldar um ser com a capacidade de sofrer por quem gosta. Por muio que me angustie a tristeza dela. Por muito que a angustie a tristeza, a ela.

A saudade é um privilégio. A dor da saudade é inferior à dor de se não conseguir sentir falta de nada, de se não conseguir estabelecer laços com gente, coisas e sítios; deixar marcas e ficar marcada.

E assim vamos andando, construindo sem esquecer o que fica para trás.

Crescendo.

de fim de semana…

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os fins de semana revelam-se estupidamente curtos.

o cansaço ocupa-os. a vontade dormir retira tempo para o resto.

quarta é dia de aniversário longe das amigas do costume. os presentes serão pirosos para compensar a tristeza.

sai-se das lojas com a irritante gata japonesa  dentro de uma caixa perfeita e espera-se que isso compense.

sente-se a tentação de fazer o bolo a condizer.

e sabe bem ter estas preocupações de volta.

o fim de semana trouxe praia cristalina, picadas de insecto, diarreia de cão, sopa misou para uma barriga que dói, muito sol e a descoberta de um sítio novo com sumos de abacate.

espera-se pelo próximo fim de semana.

Arrastamo-nos os três para a segunda que chega, com muito pouca energia, com saudades da areia nos pés e a praia cristalina e preparados apra a próxima dor de barriga, picada de insecto, sumo de abacate e tentando não pensar muito na potencial diarreia, do cão que insiste em devorar areia …

de adptasaun…

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há coisas mais fáceis outras mais difíceis.

apercebemo-nos de que a linguagem universal da brincadeira desaparece a partir de uma certa idade, causando algum isolamento e fazendo as crianças falarem outras línguas mesmo quando partilham a mesma.

os gostos definem-se, as preferências, os livros, os heróis dos filmes, as canções que se coreografam… e depois ningém sabe destas coisas, ninguém conhece, e a barriga tende a doer antes de dormir e logo pela manhã ao acordar…

o que ela não sabe ainda é que os crescidos também sentem estas coisas

de volta…

 .

saudades daquela pele ainda húmida depois do banho e do odor que se desprende dela.

saudades da voz calma antes do dormir, dos olhos meio fechados a tentar provar que ainda não há sono, das pequeninas teimas, do corpo enroscado na almofada, da preguiça ao acordar, das mãozinhas chatas no cabelo, das gargalhadas tontas a propósito de qualquer coisa insignificante, do rosa piroso em todo o objecto.

e tudo isso de volta em dose diária.

e então chega outra saudade.

saudade de quando tinha tempo para fazer lanchinhos depois da escola, acompanhar trabalhos de casa, participar em actividades, levar-te, trazer-te a todo o sitio, a qualquer hora, sem olhar para o relógio, sem ter que correr para o escritório, sem me justificar perante chefes estéreis de afectos.

e temos aqui o mar ao lado. e passamos por ele todas as manhãs. e hoje estava azul quase transparente porque não choveu. E deixamo-lo em hold até não haver reuniões onde os adultos tomam decisões de grande importância com impacto relativo.

E a saudade que fica é a de quando tudo o que eu fazia era ser tua mãe e os dias me devolviam uma satisfação em nada comparável à de um relatório sem correcções…

da memoria..

O photojojo é um sistema que funciona através do flickr seleccionando fotos e enviando-as bimensalmente um ano depois.

Tem também cápsulas do tempo onde se guardam mensagens que serão enviadas no período  pré definido.

Hoje recebi 3 fotos de há um ano atrás:

A minha filha oriental com o céu de fim do dia no jardim da avó.

mae lae

A sangria de champanhe e frutos silvestres típica das festas de aniversario do irmão mais novo.

sangria

Os pés sujos adormecidos de final de dia de brincadeira descalça.

pes

E passa-se o dedo sobre o monitor e contorna-se um pezinho de cada vez…

de para a Gui #6

O Hermenegildo acorda de barriga para o ar. Que grande soneca!

No porto já começa a escurecer. O ferry partiu novamente levando outras pessoas, outras crianças, outras galinhas e outros cavalos. Os grandes navios ainda se vêem lá ao longe, e os automóveis estão agora muito alinhados à espera dos novos donos que os virão buscar. Os sacos de arroz sobem a montanha dentro de camiões e os funcionários do porto acendem os cigarros e caminham para a rua em direcção a casa.

O Porto fica silencioso e só se ouvem as ondas pequeninas a bater nas pedras. E então o Hermenegildo estica-se, estica-se a espreguiçar-se; cauda no ar, patinhas da frente dobradas e abre muito, muito a boca a bocejar.

– Meraaaaaaaaaaau! – que deve querer dizer “estou pronto para a aventura”, porque ele levantou-se com passos muito decididos a bater com força com as patas no chão, deixando as marcas em triângulo desenhadas no pó, muito direitas a apontar para a frente.

Apenas para a frente.

E chegou à outra ponta do porto, onde acaba o alcatrão e começa o mar.

E sentou-se.

Mexeu o narizinho e sentiu o cheiro forte do mar. Inspirou outra vez e mexeu as orelhas quando sentiu a brisa fresca a passar. O céu estava já coberto de estrelas e ele levantou a cabeça e olhou para elas. O mesmo movimento que fez quando olhou para a minha janela. A janela que fica entreaberta para ele poder entrar.

E pensou nisso e sentiu saudade.

Um peixinho saltou na água e ele lembrou-se do prato em tons de azul com formato de peixe no chão junto ao armário onde todos os dias ele encontra comida.

E pensou nisso e sentiu saudade.

E sentiu uma coisa por dentro, assim uma coisa desagradável, uma coisa que começou pequenina, pequenina e cresceu, cresceu até lhe chegar aos olhos e ao coração e se transformar em lágrimas. Essa coisa chama-se tristeza. A tristeza é uma coisa que aparece sem ser convidada e esconde-se dentro de nós. Depois quando quer sair transforma-se em lágrimas e rola pela cara abaixo. Rola, rola até chegar ao queixo. E se estivermos a escrever a tristeza pode cair em gotas em cima dos nossos desenhos e se a provarmos descobrimos que é salgada.

E ás vezes quando sentimos saudade sentimos tristeza. Mas a saudade do Hermenegildo não tinha tristeza.

Era uma saudade feliz.

Porque o prato em tons de azul com forma de peixe estará sempre no mesmo sítio ao lado do armário à espera dele.

Porque a janela do meu quarto estará sempre entreaberta à espera dele.

Porque o gato cinzento e o gato das manchas e o gato laranja com a pata branca e o outro gato irritante que mia de maneira esquisita estarão todas as noites no mesmo telhado e todas as tardes no mesmo muro e todas as manhãs nas casas dos donos deles. Porque há coisas no nosso mundo que nunca mudam e serão sempre sempre iguais.

Assim como a Margarida e a Ana rosa e a Carolina estarão sempre aí; no ballet, no piano, no recreio da escola. E se ficares podes vê-las todos os dias, mas nunca verás este porto onde chegam navios com automóveis na barriga, nunca verás o ferry que transporta pessoas, crianças, galinhas e cavalos, nunca sentirás este cheiro do mar no nariz, nem a baleia atrasada nem o céu laranja. E até os gatos percebem que o mundo é uma coisa grande. Grande, grande com línguas diferentes que é bom aprender, com meninas diferentes com quem é bom brincar.

E por isso o Hermenegildo fez:

-Miaudau! – que nós já sabemos que quer dizer “Nada me assusta”, e levantou novamente a cabeça para o ceú e agitou o nariz e sacudiu as orelhas e descobriu ao longe um barquinho de pesca parado na areia. E correu nessa direccão com passos muito decididos a bater com força com as patas no chão, deixando as marcas em triângulo desenhadas na areia, muito direitas a apontar para a frente.

Apenas para a frente.

Saltou para o barco e escondeu-se debaixo das redes de pesca.

– Miaudau! – “Nada me assusta”!

E a aventura está prestes a começar!

Miaudau, nada me assusta!

E agora diz tu baixinho:

– Miaudau, nada me assusta!

E agora devagar:

– Mi-au-dau, na-da me a-ssus-ta!

E agora a sussurrar:

– Miaudau nada me assusta!

Boa noite, minha Gui!

Miaudau, que nada te assuste.

Miaudau…

de para a Gui #5

Cansado da sala, dos quartos, do jardim e da pequena praia, cansado de viver num mundo tão pequeno, o Hermenegildo acorda determinado a mudar de vida.

Corre para a cozinha, toma o pequeno almoço na sua taça em forma de peixe em tons de azul e encaminha-se para o portão.

Olha para a direita e vê os meninos a brincar na rua. Olha para a esquerda e vê a estrada grande. Olha para trás e vê a casa com a varanda onde todos se sentam a beber café e contemplar o mar, e a porta da cozinha onde junto ao armário se encontra a taça em forma de peixe em tons de azul. Levanta mais a cabeça e olha para o meu quarto lá no cimo, com a janela entreaberta para que ele possa levantá-la com a pata e entrar durante a noite. E o Hermenegildo respira fundo e diz:

– Miau! – assim, apenas um simples “Miau” maldisposto que em língua de gato deve querer dizer “Adeus”, porque ele partiu estrada fora muito senhor dos seus bigodes, a bater com força com as patas no chão, deixando as marcas em triângulo desenhadas no pó, muito direitas a apontar para a frente. Apenas para a frente.

E desapareceu.

Caminhou durante duas horas ao longo do mar. Ao lado passam carros em alta velocidade, taxis amarelos, bicicletas verdes, motorizadas com muitas cores. E todos apitam, fazem pó e fumo, gritam uns com os outros.

– Miaudau! – Fez ele, que deve querer dizer “Nada me vai assustar”, porque ele continuou de passo certo deixando as mesmas marcas em triângulo desenhadas no pó, muito direitas a apontar para a frente. Apenas para a frente.

E caminhou mais uma hora. Passou em frente ao farol e sentou-se a descansar. Olhou para o mar e viu um atum a saltar e pensou:

– Miauuurau! – que deve querer dizer “Tenho fome” porque ouviu-se a barriga a reclamar. Mas como é um gato valente levanta-se e continua a viagem. E caminhou, caminhou, caminhou até que chegou ao porto.

E escondeu-se.

No porto há uma grande agitação; barcos carregados de sacos de arroz chegam. Pequenas filas de gente levam os sacos até um grande camião. Navios enormes abrem as portas e de dentro saem automóveis. O Ferry despeja pessoas e sacos e crianças e galinhas e cabras e dois cavalos que viajaram da ilha até aqui. E entre eles estão homens de Ataúro carregados com esculturas de madeira negras para vender aos Malae em Dili.

E o Hermenegildo esconde-se. Esconde-se bem escondido debaixo das folhas de uma bananeira baixinha. (As bananeiras não são árvores. As bananeiras são ervas gigantes, mas pouca gente sabe disso.)

– Miauraurau! – disse ele, que deve querer dizer “vou esperar”, porque ele deixou-se ficar ali muito quieto, mesmo muito quieto, tão quieto, tão quieto, que acabou por adormecer…

de para a Gui#4

Existem três formas de um gato se alimentar, pensou o Hermenegildo.

3!

Primeira forma: um gato pode esconder-se durante horas assim debaixo de uma mesa, ou debaixo de uma cadeira, ou mesmo dentro de um armário caso alguém se esqueça de o fechar. Espera, espera, e quando aparece um daqueles ratos tontos que pensa que por ser pequeno ninguém o vê, salta e come-o.

Possível problema, o rato é rápido e foge. O gato então tem que o perseguir e isso é uma coisa muito cansativa.

Segunda forma: um gato esconde-se atrás de uma cortina ou atrás de uma bota alta de borracha que não esteja muito suja e espera que um outro gato que esteja há horas escondido debaixo de uma mesa, ou debaixo de uma cadeira, ou mesmo dentro de um armário que alguém se tenha esquecido de fechar, salte e apanhe um daqueles ratos tontos que pensa que por ser pequeno ninguém o vê. Quando o outro gato estiver quase quase a comê-lo, assim mesmo com a boca aberta aberta e os olhos um bocadinho fechados por a boca estar tão aberta , então nesse momento o gato salta e rouba-lhe o rato.

Possível problema, o outro gato é rápido e foge. O gato tem que o perseguir e isso é uma coisa muito cansativa.

Terceira forma: um gato faz um ar amoroso e roça-se nas pernas da sua dona, ela pega-lhe ao colo e ele começa a fazer rom-rom. A dona, absolutamente encantada corre a abrir uma latinha especial de patê de sardinha.

Possível problema: a dona constata que o gato lhe encheu de pêlos o vestido comprido dourado com borboletas pretas em veludo e coroa a condizer. Fica furiosa porque estava mesmo mesmo para sair e torna-se um bocadinho agressiva. O gato tem que fugir e isso é uma coisa muito cansativa.

Mas existe uma quarta forma que só o Hermenegildo conhece: um gato senta-se em cima do frigorifico onde estão sentados alguns bonecos um pouco estranhos, e fica muito quieto. Mas mesmo muito muito quieto. Tão quieto que ninguém percebe que ele respira, que ele mexe os olhos, que ele abana as orelhas ou sacode os bigodes. Quieto como se fosse apenas mais um boneco! E espera porque sabe que alguém terá fome. Alguém muito distraído virá cozinhar. Alguém irá virar as costas por um momento, ou esquecer-se de qualquer coisa no quarto e ir lá a correr buscá-la. E nessa altura um gato esperto salta de cima do frigorifico, lança-se sobre o prato, escolhe o mais saboroso dos pedacinhos de carne e foge silenciosamente para o jardim…

E agora que expliquei as 3 formas possíveis de um gato se alimentar e a forma mais simples de um gato o conseguir fazer, vou voltar para a cozinha porque o meu lanchinho está a arrefecer.

– Oh! Onde está o meu crepe? Hermenegiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiildo!